sexta-feira, 19 de agosto de 2011

EDUCAÇÃO FAMILIAR: OS VALORES TRANSMITIDOS PARA AS CRIANÇAS REMANESCENTES INDÍGENAS DA COMUNIDADE DE ALDEINHA DE MISSÃO DO SAHY, BAHIA

Tatiane Patricia da S. Santos; Valéria Macedo Gonçalves
Graduandas em Pedagogia, Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Campus VII Senhor do Bonfim. tatiamortathy@hotmail.com;
Maria Gloria da Paz
Doutora em Educação pela UFRN, Professora do Campus VII da UNEB Senhor do Bonfim, Bahia. gogodapaz@yahoo.com.br



RESUMO

O presente estudo teve por objetivo investigar como é que são transmitidos os valores culturais pelos familiares das crianças remanescentes indígenas da comunidade da Aldeinha de Missão do Sahy. Sabe-se que muitas histórias sobre índios são contadas e vão desde as transmitidas em livros didáticos até as contadas por pessoas comuns e todas elas têm em comum a mesma premissa: a tentativa de retratar a cultura desses povos; o que se torna algo de grande complexidade, em virtude de serem vários grupos e cada um deles ter vivências diferenciadas. Boa parte dessas histórias, contadas nos livros didáticos e nos romances de Literatura Brasileira, mostram o índio belo, sedutor, com penachos, de tangas, cultuando seus deuses, sempre arredios, ignorantes, fazendo a dança da chuva e emitindo sons de uhuhuh, como no cinema americano. A Missão de Senhora das Neves do Sahy, situada no Município de Senhor do Bonfim, no Território do Piemonte Norte do Itapicuru; foi instalada por volta de 1697 ao sopé do monte Tabor, pelos Padres Franciscanos da Ordem Menor. Atualmente é uma comunidade remanescente com uma população aproximada de 3.000 habitantes possui um núcleo comunitário conhecido como Aldeinha ou Tribo; este local concentra em torno de 10 famílias, todos são parentes, que tem como principal fonte de renda o artesanato de cipó. O trabalho artesanal desse povo é passado de geração a geração, tanto os adultos como as crianças e jovens trabalham nesse processo. Os matrimônios geralmente acontecem entre os próprios primos, para que não se percam os laços sanguíneos e caso aconteça de um membro do grupo casar-se com uma pessoa de outra família, deverá residir em outro espaço, fora da Aldeinha. Com base nessa argumentação, nos surgem alguns questionamentos: quem é o remanescente indígena da Aldeinha? Como é que são transmitidos os valores culturais para o grupo? Como é a atuação da família da Aldeinha no processo de transmissão e preservação dos valores? Como é que se dá essa transmissão para as crianças remanescentes da Aldeinha em Missão do Sahy?

Palavras-chave: Palavras- chave: valores culturais- índio brasileiro- criança remanescentes da Aldeinha de Missão do Sahy.


1. INTRODUÇÃO

O presente estudo é resultado de um trabalho de conclusão do componente curricular História e cultura afro-brasileira e indígena, oferecido no 4º semestre do Curso de Pedagogia do Campus VII da UNEB, objetivando investigar como é que são transmitidos os valores culturais pelos familiares dos remanescentes indígenas da comunidade de Aldeinha de Missão do Sahy.
Dentre as atividades desenvolvidas para a concretização deste trabalho, destacam-se, especialmente, as visitas de aproximação e conhecimento dos moradores, a observação e a coleta de depoimentos através de entrevistas.
Sabe-se que muitas histórias sobre índios são contadas e vão desde as transmitidas em livros didáticos até as narradas por pessoas comuns, todas elas tomam para si a mesma premissa: a tentativa de retratar a cultura desses povos a partir da visão colonialista; o que lhe confere grande complexidade, em virtude destes povos estarem divididos tanto geograficamente quanto culturalmente em vários grupos distintos.
Geralmente, as histórias contidas nos livros didáticos e nos romances de Literatura Brasileira, mostram o índio belo, sedutor, com penachos, de tangas, cultuando seus deuses, sempre arredios, ignorantes, fazendo “a dança da chuva” e emitindo sons de uhuhuh, como no cinema americano, o que evidencia a carência de informações e esclarecimentos, pois não temos conhecimento razoável, como afirma Cunha (2002, p. 11): “Sabe-se pouco da história indígena: nem a origem, nem as cifras de população são seguras, muito menos o que realmente aconteceu”.
Emerge daí, a indagação: como podem ser considerados ignorantes os povos que transmitem seus costumes, seus conhecimentos e ensinamentos de geração a geração, sem qualquer consulta ou contato com os referidos povos, embora sejam identificadas a sua importância e a sua influência para a configuração cultural do nosso país? É evidente a necessidade de estudos que sejam capazes de desvelar saberes, propiciando a valorização e o respeito à cultura dos povos indígenas e seus descendentes.

Rumores sobre valores culturais indígenas

Com a finalidade de aprofundar conhecimentos sobre o que são chamados rumores culturais, trazemos informações de Santos (2009), a respeito dos povos da fase Marajoara, descoberta através de estudos feitos no baixo amazonas. Segundo o autor:

Os povos da fase Marajoara vieram do noroeste da América do Sul e chegaram à ilha de Marajó provavelmente por volta do ano 400 da nossa era, ocupando a parte centro- oeste da ilha. Nessa região construíram habitações, cemitérios e locais para as cerimônias. (p. 123).

Os primeiros rumores da cultura dos povos em questão vieram com as descobertas de cerâmicas, nos estudos feitos no baixo amazonas por volta do ano 1.000 A.D.. Acredita-se que era uma sociedade dividida em camadas sociais, com um governo forte e com certa divisão ocupacional de trabalho. Uma sociedade mais complexa do que qualquer outra que os europeus encontrariam em território da Amazônia. Segundo antropólogos, físicos e arqueólogos, não se pode dizer muito sobre os pontos pelos quais os índios passaram nem o percurso que seguiram em sua ocupação e, nem como evoluíram biológica e culturalmente após penetrarem na área correspondente ao atual Brasil. (Melatti, 1994).

Ao falar acerca dos povos indígenas, fazem-se imprescindíveis certos cuidados, a fim de desmistificar a ideia simples e reducionista de que o índio é um ser sem cultura, como muitas vezes aparece retratado nas telas de cinema e/ou ilustrada pelos romancistas. Para prosseguimento da discussão, convém que conceituemos cultura, na definição de Ribeiro (1997):

Herança social de uma comunidade humana, representada pelo acervo co-participado de modos padronizados de adaptação à natureza para o provimento da subsistência, de normas e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com que seus membros explicam sua experiência, exprimem sua criatividade artística e a motivam para a ação. (p.127).


Quando arte indígena é pensada, costuma-se reduzi-la aos objetos produzidos e costumeiramente as “qualidades artísticas” de tais objetos são atribuídas de acordo com nosso ponto de vista e com os critérios de nossa civilização, segundo Santos (2009, p.112) “a arte indígena representa mais as tradições de sua comunidade do que a personalidade de quem faz.” Logo, vale dizer que a arte é para o indígena uma representação das vivências, dos costumes, dos festejos e das cenas do cotidiano.

Sob uma perspectiva ampla, devem ser compreendidas como valores culturais indígenas suas vivências e práticas, desde a maneira como lidam com a natureza, passando pelas formas de organização e a hierarquia dos grupos, também, o modo fazer e de distribuir o trabalho entre os membros da tribo e ainda como produzem arte, pinturas corporais, adornos e cerâmicas e etc.

O que se sabe sobre o índio brasileiro?

Os índios são identificados, ainda hoje, como dois grandes grupos culturais: o grupo dos silvícolas que vivem nas áreas florestais, praticando uma agricultura desenvolvida e diversificada que, associada às atividades da caça e da pesca, lhes permite ter moradia fixa e a dos campineiros, que vivem nos cerrados e nas savanas, com uma cultura bem menos complexa e uma agricultura menos variada que a dos primeiros. (Santos, 2009)
Não se pode dizer com precisão o quanto se sabe a respeito do índio brasileiro. De acordo com Melatti (1994):

Os europeus denominaram os habitantes encontrados na América de índios, por pensarem estar pisando as terras das Índias; com este termo, índios os conquistadores rotulavam as populações mais diversas desde o norte até o sul do continente americano. (p.19)

A definição que se tem de índio é diversificada, e muitas vezes distorcida pela falta de acesso a informação. Mas, isso não se resume aos leigos no assunto, muitos autores ainda trazem uma imagem negativa e vaga sobre esses povos, a mesma imagem vista pelos primeiros europeus, que aqui chegaram e mesmo sem observar e conhecer a sua cultura os denominou de Índios. E de acordo com (Melatti, 1994), são vários os critérios tomados para definir o que seria o indivíduo aqui encontrado; o racial, o legal, o cultural, o de desenvolvimento econômico e o de autodefinição étnica.
Com relação ao que sabemos sobre o índio brasileiro, nada se compara aos registros dos livros didáticos. Considerando que o imaginário das pessoas se constrói a partir de fragmentos dos livros, das imagens da mídia e de alguns valores familiares. O depoimento de Celmar Santos(2008) em sua monografia, relata de que maneira foi construído o seu imaginário sobre índios:

Tomando como exemplo o meu próprio imaginário, desde muito cedo ouvi muitas histórias e lendas sobre os índios, nasci numa cidade mineira cujo nome vem do tupi-guarani, Manhumirim, que significa “rio pequeno” (índios Botocudos); os índios viveram em mim através das histórias que ouvia, sendo elas verdadeiras, falsas, boas ou más. Essas histórias construíram em mim confusos sentimentos, em que às vezes amava-os, odiava-os ou admirava-os. Amava porque achava maravilhosa a forma como eles se respeitavam, e gostavam da vida; odiava porque tinha medo, sempre ficava imaginando que um índio ia voltar e me devorar juntamente com minha família, pois construí o meu imaginário a partir da premissa de que os índios comiam gente. (2007, p.14)

Este relato conserva alguma semelhança com o imaginário da maioria dos remanescentes de Missão do Sahy, o que acarreta acentuado distanciamento e consequentemente em um não autoreconhecimento, o que muitas vezes implica na perda de alguns benefícios que por lei foram instituídos para estas comunidades que não sendo nem brancos e nem índios, ficam a margem do desenvolvimento. Uma ideia preconcebida e transmitida pelos ancestrais se sobrepõe, uma vez que foram levados a mudar os costumes, assimilando novas maneiras de convivência, ligadas a matriz europeia.



Aldeinha de Missão do Sahy: o que se sabe sobre a transmissão de valores e costumes para as
crianças?


O núcleo comunitário denominado “Aldeia” ou “Tribo” concentra em torno de 10 famílias, todos são parentes e têm como principal fonte de renda o artesanato de cipó. O trabalho artesanal da cestaria é passado de geração a geração, transformando-se num fio que mantém vivos os laços familiares desta comunidade, fortalecendo inclusive os matrimônios que tradicionalmente acontecem entre os parentes mais próximos, os primos.
Novais e Silva (2010), em um trabalho recente, realizado junto aos moradores da Aldeinha, afirmam que

Está tribo de remanescentes indígenas é constituída por 10 famílias com o total de 52 habitantes nos quais temos 35 adultos e 17 entre crianças e adolescentes os remanescentes desta localidade todos possui os mesmos laços sanguíneos, pois é comum matrimônios entre os mesmos, ou seja, entres primos onde esta cultura está impregnada até os dias de hoje com ressalva que nos tempos atuais estes matrimônios não acontecem com tanta frequência, no entanto ocorrendo ao contrário o remanescente casando-se com outra pessoa de fora da comunidade o mesmo não poderá morar na aldeia, terá que procurar outro lugar para morar, pois na localidade não há mais espaço físico e também porque a sua cultura não admite pessoas de outras comunidades.


O conhecimento que se tem sobre a origem deste lugar, denominado Aldeinha, é ainda muito incipiente, não vai além da localização geográfica ou de algumas informações elementares sobre a origem, os costumes e a organização do grupo. Alguns destes fragmentos foram obtidos através das narrativas de sua matriarca dona Edite, que a princípio contava com desenvoltura e orgulho como tinha criado aquele lugar onde reside com a sua família, mas hoje devido a procura de muitos curiosos sobre o assunto, a família e ela mesma não se dispõem mais a fornecer informações; os motivos alegados são os mais diversos, e vão desde a necessidade de preservação da intimidade coletiva da família, até a questão de obtenção de algum ganho extra com essas narrativas.
Segundo a matriarca dona Edite, o local, afastado do centro do povoado, foi habitado por ela e seus filhos logo após o falecimento do seu esposo. Viúva e sem ter uma situação econômica que possibilitasse o sustento dos filhos menores, contudo sem querer doá-los para serem criados por algumas famílias de melhores condições, resolveu isolar-se e sobreviver daquilo que a mata poderia prover: a caça, a pesca, frutos silvestres, a comercialização do oricuri, uma espécie de fruto de uma pequena palmeira do sertão do Nordeste e a confecção de pequenos cestos de cipó.

A sua principal fonte de renda é o trançado que por muitas décadas só os homens da família trabalhavam com essa manufatura mais ao longo dos anos as mulheres ganharam gostos e espaços onde ocorrem a prática dessa manufatura até os dias de hoje; desse modo, toda comunidade tira o seu sustento através da confecção desses objetos que com o passar dos anos foram sendo aperfeiçoados, ganhando novos formatos mas tendo como matéria-prima o cipó caititu e o cajal, o bambu e a taboca, os quais são plantas nativas da região. (Novais e Silva, 2010)

Com o melhoramento das técnicas até então primitivas, o artesanato foi criando o seu espaço de comercialização e transformando-se em renda principal desta comunidade familiar e a exemplo de outros produtos artesanais confeccionados por comunidades similares, os produtos por eles produzidos já são deslocados para outros espaços comerciais como afirmam (Novais e Silva, 2010), em um levantamento realizado em 2010, para estudo sobre esta pequena comunidade.

Nesta comunidade são confeccionados inúmeros objetos como: caçoas, cestos, bicicletas e burricos decorativos, luminárias e móveis: banquinhos, namoradeiras, sofás entres vários outros com preços que variam entre R$ 8,00 á R$ 200,00 por peças, estes produtos são comercializados nas feiras da região, na feira de Missão do Sahy e em feiras artesanais; além de receberem encomendas de todas as partes do país também já forneceram alguns produtos para fora do país.


A questão indígena é vista pelas crianças do presente, como um acontecimento do passado, mas alguns se reconhecem como descendentes, “as casa igual a gente”; ou ainda quando lembram que os pais falam coisas sobre índios. “ Eles mora agora, né, eles faz agora coisa deles,[...]. Meu tio sabe um bocado de coisa de casa de barro. Ele vende um bocado de coisa. Vende assim... flecha dos índio, verdadeiro, das que eles fazem lá na Passagem Velha”.
O histórico desta região remonta-se ao passado por volta de meados do século XVII, em que foi instalada a Missão de Senhora das Neves, localizada no atual Território do Piemonte Norte do Itapicuru, no município de Senhor do Bonfim, Bahia, que ajuntou em aldeamento índios sobreviventes das descidas e das guerras justas. Algumas fontes afirmam que esta missão foi um provável aldeamento, no qual se ergueu um convento dos Padres Menores, ligados à missão de província de Santo Antônio do Recife. Para o Frei Venâncio Willeke (1979), este era um local de descanso e abastecimento de víveres dos padres em viagens, é uma das missões mais velhas do Brasil, com 314 anos, cuja existência também se confirma nas narrativas de Spix e Martius, em sua passagem pelo sertão da Bahia.
A origem desta localidade até bem pouco tempo não tinha visibilidade, contavam-se histórias, lendas e contos imaginários, porém, sem mencionar a importância do povoado para o Patrimônio Histórico do Município de Senhor do Bonfim. Provavelmente por desconhecer tal fato, as escolas não demonstravam interesse e nem instigavam os seus alunos a buscar o conhecimento sobre de sua identidade. Fora dos muros escolares, as crianças falavam de rituais religiosos, de costumes e valores sem que os professores percebessem que estes fragmentos estão ligados diretamente a sua ancestralidade, e mesmo diante da modernização da vida, estes fragmentos continuam resistindo ao desgaste natural do tempo e as assimilações, sendo de qualquer maneira transmitidos pelos grupos familiares e pelos mais velhos da comunidade.
Quanto às fontes escritas, encontram-se a disposição outros trabalhos, embora sobre diferentes temáticas, contribuem com informações sobre a criança remanescente indígena de Missão do Sahy. Uma é um trabalho de conclusão de curso de Celmar Santos (2008), que aponta valores e elementos culturais da comunidade, nas narrativas das crianças entrevistadas, a outra é de autoria Maria das Neves Dourado, que trata dos elementos culturais da comunidade como temas de estudo nas escolas da localidade.
Em Simões (2008) observa-se que as crianças ao falarem sobre índios, identificam os moradores da Aldeinha, como tais, e esse reconhecimento atesta a simbologia com a qual esta comunidade é identificada, destacando como característica o artesanato de cipó ou a palhinha como elas denominam o trançado de cipó. “Eu já fui lá na tribo (Lua); e “ Nós vimos eles fazê palhinha” (Bola).
Ainda segundo Simões (2008), os conteúdos escolares se misturam ao imaginário da população quando as crianças falam sobre a sua origem:

Grande parte das crianças expressa conhecimentos recebidos através da escola: “os portugueses vieram pra cá, mataram os índios, foi aí que existiu a gente”, de que os índios foram os primeiros a chegar ao Brasil, que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil e que “os portugal” (sic!) chegaram aqui, mataram e trocaram os índios por dinheiro e navios: “Repara, os branco eles tinha as tribo dos índio aí eles pegava e trocou os índio pelo navio aí trocaram os índio”.


Neste relato, a criança imagina que os remanescentes são originários do que restou da chacina dos indígenas da região, o que de certa forma se confirma na historiografia regional. De acordo com Machado (2007, p.25), “Os índios que restaram do massacre perpetrado pela conquista dos portugueses foram aldeados pelos padres franciscanos, que instalaram na localidade Sahy uma missão religiosa autorizada pela Casa da Torre de Garcia D’Ávila”.
Os depoimentos da criança autodenominada Cachorrinho “Eles pegava igual os escravo e trocava, trocava com dinheiro”, “Repara, os branco, eles tinha as tribo dos índio, aí eles pegava e trocou os índio pelo navio, aí trocaram os índio.” apontam para a tentativa de escravização do indígena, a tentativa de transformá-lo em moeda de troca, o que não frutificou, devido a condição de liberdade que o índio trazia em si, preferindo muitas vezes a morte a se deixar escravizar.
Dourado (2008), em seu trabalho de conclusão de curso, faz uma alusão a uma suposta comercialização de indígenas escravizados, perpetrado pela Casa da Torre:

[...]em 1721, num episódio dramático, Martin de Nantes evitou a todo custo que o fazendeiro e colonizador Garcia D’Ávila II levasse todos os índios da aldeia de Missão do Sahy como escravos para vendê-los aos senhores de engenho da região. Garcia D’Ávila e seus herdeiros foram os primeiros desbravadores a chegar a essa região.

Escravizados ou não, a mão de obra indígena, era de grande importância para algumas áreas de trabalho, e os padres recebiam correspondências de diversos colonos, solicitando indígenas para o trabalho. Em PAZ (2004,p 133),encontramos uma citação de uma carta, cujo teor registra uma queixa contra a atitude dos padres em não fornecerem índios para o trabalho nas minerações de salitre.

Tenho noticias que Vossa Paternidade nas ocasiões que se lhe pedem os índios da sua Missão, que são necessários, para o trabalho do salitre, os nega, e que os está dando ao mesmo tempo, a várias pessoas particulares, para o seu serviço; e como o de Sua Magestade, que Deus guarde, prefere a qualquer outro, não é justo que este se não faça,e se atraze por cauza de não ter índios com que se trabalhe naquelas oficinas, sendo os da Missão de Vossa paternidade dedicados para esse feito e não para outro fim; nestes termos me parece encarregar a Vossa Paternidade que todas as vezes que o Administrador Antonio de Almeida Velho, ou o ajudante Luiz Antunes, mandar pedir a Vossa Paternidade índios para o trabalharem na fábrica de salitre, lhos remete Vossa Paternidade prontamente os que houverem mister, e fio no zelo de Vossa Paternidade que não terá a menor repugnancia neste particular; por ser em prejuizo do serviço de Vossa magestade, para o qual está Vossa Paternidade também obrigado a concorrer de sua parte, como vassalo que é do dito senhor;Deus guarde a Vossa Paternidade. Ba. E Março 12 de 1706. Luiz Cesar de Meneses.


Nos depoimentos das crianças, os resquícios de uma possível escravização indígena são consonantes, de certa forma, com fragmentos de cartas que afirmam que as Missões tinham outras funções além da missão evangelizadora, eram também locais de formação de trabalhadores. Por outro lado, não se tem notícias de comercialização dos indígenas nestas localidades, mas se tem indícios de trabalho sem remuneração, com o auxilio dos padres, como registra o trecho destas cartas.


[...] me parece dizer a Vossa Mercê que, mande logo ajuntar rodos os negros da fábrica, na oficina de Nossa Senhora da Encarnação do rio Paquy, na forma em que antes estavam e deixe na mina de João Martins, só aqueles que nela assistiam e para se ir continuando fazer salitre, nesta mina mandará Vossa mercê meter os índios que forem necessários, para trabalharem com os ditos negros,e todos mais enviará para Paquy e com toda brevidade fará levantar a casa da oficina, e pô-la capaz de se lavrar nela salitre. Assim que chegar o ajudante Luiz Antunes, mande Vossa Mercê ajuntar os índios do Paquy e das mais aldeias, e buscar os que forem necessários para conduzirem as terras para a fábrica do Paquy,[...]

“[…] que todas as vezes que o Administrador Antonio de Almeida Velho, ou o ajudante Luiz Antunes, mandar pedir a Vossa Paternidade índios para o trabalharem na fábrica de salitre,lhos remete Vossa Paternidade prontamente os que houverem miste [...]”.



Algumas crianças dizem que gostariam que a escola falasse melhor sobre os índios, seus costumes, a arte: música e dança e quando perguntados como seria essa atitude da escola e como seria esse discurso, eles respondem: que “Ensinasse a nóis como é que...[que eles vivem] ensinasse.... bem deles. Não matar, não xingar, ensinando música deles.[...] Falar a dança deles. O que existiu de índio, como vive...[...]” .
As crianças falam ainda sobre os sentimentos de amor e união, “[…] Antes vivia unido, tudo que tinha dividia, antes, e agora não, eles tinha amor e hoje só raiva, briga. Falam sobre a convivência com os animais: pássaros, cães e aves; revelam certa intimidade sobre o cuidado com os animais, e demonstram resquícios quando dizem que os indígenas conversam com seus animais de estimação assim como eles que também conversam com os animais com os quais convivem.
A liberdade é um valor destacado em quase todas as falas, para eles é muito importante que estejam sempre livres, em união e em paz “Viver livre , mas eu não queria que ninguém me matasse, era viver livre, em paz, caçando, pescando, os índio não prende ninguém, não, deixa livre.
O trabalho é também um valor transmitido pelos pais e pelo grupo familiar, uma vez que todos residem no mesmo espaço, daí a proveniência da denominação Aldeinha, as crianças convivem diariamente com o do trançado de cipó, a coleta e a quebra do ouricuri, uma convivência que faz lembrar o estudo de Barcellos (2006, p. 195), quando retrata algumas vivências dos Potiguara da Paraíba.

[…] enquanto as crianças brincam, choram, divertem-se, aprendem e participam de todo o processo de aprendizagem cultural: há menino em qualquer lado, em cima do forno, perto da massa, correndo para todo canto, pedindo para comer beiju, brigando com o colega... Desse modo, as crianças participam de todas as atividades e fica garantida a continuidade desse memorial.

De modo parecido, as crianças de Missão do Sahy e da Aldeinha convivem entre as atividades de trabalho, o trançado do cipó, e os estalos da quebra do ouricuri; assim como foi um dia a vida dos seus pais e avós. A participação das crianças nas atividades laborais de suas famílias, na religiosidade e no convívio do lar, é uma grande motivação para que se estabeleçam algumas redes geradoras de construções cognitivas, uma vez que este espaço livre, porém com alguns limites preestabelecidos pelo grupo familiar, é um grande laboratório de experimentação, construção e aquisição de conhecimentos.
A memória coletiva do grupo se mantem, mesmo cercada pelos elementos culturais midiáticos do presente, são os parentes mais velhos, principalmente nas áreas rurais, os responsáveis pela preservação das crenças e das imagens que representam sua família. É esta memória coletiva que ajuda na preservação dos valores morais, religiosos e culturais; e a convivência das crianças com os idosos, ouvindo e contando histórias, sobretudo as que acontecem no seio do grupo familiar, que resulta no fortalecimento das imagens, dos valores e da memória cultural do grupo,

“[...] pois é na medida em que a presença de um parente idoso está de algum modo impressa em tudo aquilo que nos revelou de um período ou de uma sociedade antiga, que ela se destaca em nossa memória, não como uma aparência física um pouco apagada mas com o relevo e a cor de um personagem que está no centro de todo um quadro que o resume e o condensa [...] ”. (Halbwachs.1990,p.66).

O pensamento de Halbwachs (1990), se encaixa perfeitamente nas narrativas de D. Edite, a Matriarca da Aldeinha, sobre o período de medos e incertezas em assumir a criação dos filhos após a viuvez precoce; sem condições de manter uma família com o mínimo de necessidades, ela recorre mesmo que inconscientemente ao passado e descobre as lembranças do trançado da cestaria, uma atividade do seu grupo familiar, que mesmo distante de sua realidade, estava ainda presente como herança coletiva

Uma conclusão ou seria uma nova Roda de Conversa?

O objetivo deste pequeno estudo sobre a transmissão de valores familiares para as crianças da Aldeinha foi transformar em registro fragmentos da história de vida dos moradores da comunidade de Aldeinha no povoado de Missão do Sahy, município de Senhor do Bonfim, Bahia. Em virtude de ser este grupo remanescente indígena e que guarda em sua família uma herança mais próxima dos antigos habitantes desta localidade.
Algumas vivências transmitidas pelo grupo chamaram atenção devido à sua especificidade, como, por exemplo, o casamento entre pessoas da mesma família, o trançado da cestaria - hoje mais atualizado tanto no designe quanto nos objetos, as casas de taipa, moradia dos filhos e netos construída em volta da casa materna, as formas de organização do trabalho dentre outras.
Tanta curiosidade acabou acarretando, também, uma grande frustração, pois, a princípio, acreditávamos que seria muito fácil obter informações sobre a comunidade, até porque é um local onde um grande fluxo de pessoas diariamente acorre em busca de objetos artesanais, construídos com o trançado do cipó, o que nos levou a acreditar que as fontes estariam facilmente disponíveis. Contudo, o tão esperado acervo de relatos escapou-nos por entre os dedos... As personagens foram se tornando escorregadias, ensimesmadas e não nos permitiram maior aprofundamento, não nos deixaram entrevistar e nem sequer conversar com as crianças e guardaram as informações que necessitávamos.
Este acontecimento imprevisto nos levou a pesquisar outras fontes, que tivessem alguma aproximação com o nosso objetivo e nos dessem subsídios para concluirmos o nosso trabalho. Em busca de fontes, encontramos alguns trabalhos acadêmicos: artigos, monografias e dissertações que nos auxiliaram na construção deste estudo.
Por fim, o que se sabe é que esta comunidade tem o comando de uma senhora de oitenta e poucos anos, que ao ficar viúva, retirou-se com seus filhos para uma área de mata ainda semi explorada, fazendo dali, o que se conhece hoje como Aldeia e /ou Aldeinha. Todas as famílias que ali residem foram constituídas pelos seus descendentes, realizando casamentos entre si, preservando assim o parentesco consanguíneo e os símbolos do grupo.
A vida econômica da Aldeinha é desenvolvida através de atividade extrativista do ouricuri, em potencial menor, e o artesanato na confecção de cestaria, móveis e objetos decorativos de cipó, um vegetal que crescia em abundância no entrono da aldeia, mas que pela grande utilização deste no trabalho e à medida que cresce a demanda pelos produtos, esta matéria-prima vem se distanciando geograficamente e se tornando a cada dia mais escassa.
As crianças da Aldeinha convivem com estas experiências, vivem entre o trançado do cipó, os estalos da quebra do ouricuri, a presença dos mais velhos e suas histórias e a escola, que mesmo em condições distantes do que seria desejado e necessário - não contemplando estas especificidades em seu currículo, faz vislumbrar um futuro diferente das vivências dos seus pais e avós.
Esta diferença tem sido potencializada pela inserção de outros valores, a nova visão de mundo que a tecnologia tem trazido, o volume de informações transmitido pela mídia, provavelmente tenha enfraquecido a transmissão da tradição destes grupos e talvez seja mais um dos motivos pelos quais se diga hoje que os mais jovens não valorizam o passado, que eles desconhecem a sua origem, que eles não respeitam os mais velhos e suas tradições.
As modificações têm ocorrido inclusive na arquitetura da aldeia, que foi contemplada com obras do Governo Federal, sendo construídas novas casas de alvenaria e com melhor infraestrutura, favorecendo certamente a qualidade de vida aos moradores desta pequena comunidade, preservando os locais e o espaço por eles escolhidos para viver.
Por fim, este trabalho nos deixa uma excelente informação, a de que é necessário o cuidado com as fontes, a sua preservação é vital para que se possa trazer à luz alguns acontecimentos que escapam da documentação oficial e que contam a história de muitos grupos que vivem em suas localidades, distante do burburinho e da liquidez das grandes cidades.


Referências


BARCELLOS, Lusival Antonio, Práticas educativo-religiosas dos índios Potiguara do Paraíba. 2005. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

CUNHA, Manoela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura. FAPESP. 1992.

DOURADO, Maria das Neves A. Currículo, Narrativas e Oralidade: A história de vida de D. Terezinha e as contribuições para o currículo da Escola Municipal Antonio Bastos de Miranda – Missão do Sahy. 2008. Monografia (Curso de Pedagogia). Universidade do Estado da Bahia,

HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo: Vertice, 1990

MACHADO, Paulo Batista. Notícias e Saudades da Villa Nova da Rainha, aliás, Senhor do Bonfim. Salvador: EDUNEB, 2007.

MELLATI, Júlio Cézar. Índios do Brasil. 7ª ed.- São Paulo: HUCITEC; 1994- ( Estudos Brasileiros; 14)

DA PAZ; Maria Gloria. Colégio Estadual de Missão do Sahy: os olhares de uma escola sobre um antigo aldeamento. 2004. Dissertação (Mestrado em Educação). UCAC, Quebec.

SANTOS, Mª das Graças Vieira. História da arte. 17ª edição – 5ª impressão. Editora Ática. São Paulo, 2009

SANTOS. Celmar Osório de M. S. dos. O Índio no Imaginário de Crianças de um Povoado Remanescente de Antiga Missão Franciscana. 2007. Monografia (Curso de Pedagogia). Universidade do Estado da Bahia, Campus VII.

SPIX, Von Baptist J.; VON MARTIUS, Carl. F. P. Viagem pelo Brasil, 1817-1820. São Paulo: Melhoramentos, 1968

RIBEIRO, Darcy. . O processo civilizatório: estudos de antropologia da civilização, etapas da evolução sociocultural. 7. ed Petrópolis (RJ): Vozes, 1983.

NOVAIS, Jaqueline Oliveira, SILVA Raiane da Cruz. O trançado: a sua influencia na vida dos remanescentes indígenas de Missão do Sahy. Projeto. UNEB- Campus VII. 2010

WILLEKE, Frei Venâncio, Missões Franciscanas no Brasil (1500/1975), Petrópolis: Vozes, 1994.


Fontes orais


1. Dona Edite. (matriarca da Aldeinha)

2. Criança entrevistada por Celmar Simões em 2008.
Bola
Lua
Cachorrinho

Revisão
Cristiane B. Pinto- Professora graduada em Pedagogia -UNEB/Campus VII.
cristiane.zoeh@gmail.com







quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

HISTÓRIA E EDUCAÇÃO DE MULHERES REMANESCENTES INDÍGENAS DE MISSÃO DO SAHY*

Profª Drª Maria Gloria da Paz
Campus VII- Uneb, Sr. do Bonfim-Ba

RESUMO

Estudo História e Educação de Mulheres Remanescentes Indígenas de Missão do Sahy tem como objetivo compreender através de reminiscências e lembranças, a transmissão de costumes e práticas educativas de um grupo de mulheres em suas relações com a família, a escola e a religião. O aporte teórico-metodológico utilizado foi a História Oral, uma abordagem que nos deu oportunidade de trabalhar com a história de mulheres e a memória, buscando, reconstituir algumas experiências vividas por estas mulheres como detentoras da guarda das histórias e dos saberes transmitidos pelas antepassadas; como ativistas em atividades comunitárias, em partidos políticos; na direção de associações comunitárias e zeladoras da igreja. A pesquisa foi realizada no distrito de Missão do Sahy, um antigo aldeamento franciscano instalado em 1697 no território das Jacobinas, no Município de Senhor do Bonfim, norte da Bahia, e extinto por volta de 1863. O estudo mostrou a presença de resquícios das práticas franciscanas, revelou que as orientações religiosas contribuiram de forma substancial para a consolidação do papel da mulher de Missão do Sahy como mãe e esposa, apontou o preconceito que vitimiza as mulheres mais jovens que, nem índias e nem negras são vitimadas pela discriminação, e pelo desconhecimento da sua origem. Vários autores auxiliaram neste estudo: Halbwachs (2006), Bosi (1994) e Pollak (1989) contribuíram para a construção do estudo da memória; Perrot (1988, 2006, 2007), e Del Piore (2007) embasaram a história de mulheres; os autores regionais Machado (1993, 2007), Lourenço Pereira da Silva (1906, 1915), Adolfo Silva (1971), Edith Freitas (1997), José Freitas (2001), Da Paz (2001, 2004), Dourado (2008), Santos (2007), Araújo (2002) e Vieira Filho (2008) contribuíram para a construção de uma historiografia do local da pesquisa. Os cronistas Frei Martinho de Nantes (1979) e Frei Venâncio Willeke O.F.M. (1994), além dos teóricos Norbert Elias (1993), Michel de Certeau (1994) e Philipe Àries (1981), que apresentaram importantes elementos para a análise dos depoimentos.
Palavras-chave: Memória, História e Educação, Mulheres remenescentes indígenas, Aldeamentos Franciscanos.

*TESE defendida em 13 de outubro de 2009, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal-RN

MUHERES DO SAHY: UMA LEITURA SOBRE O NAMORO E O CASAMENTO1
Maria Gloria da Paz*
Marlucia de Menezes Paiva**
RESUMO
Este texto é resultado de parte de uma pesquisa desenvolvida num extinto aldeamento franciscano, denominado Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy, situado no Piemonte Norte do Itapicuru, no Município de Senhor do Bonfim,Bahia. O campo de estudos que ancora esta reflexão é a História de Mulheres e tem como objeto as memórias das práticas educativas de mulheres na família, na igreja e na escola. Para este texto o recorte recai sobre o namoro e o casamento, em que tentamos entender como é que acontecia o namoro, numa comunidade em que era costume manter distantes meninos e meninas. A abordagem utilizada foi a História Oral; os sujeitos da pesquisa são dez mulheres com idades entre 15 e 100 anos.
Palavras – chave: memória, práticas educativas, namoro e casamento.
RÉSUMÉ
Ce texte est le résultat des recherches effectuées dans une station défunte franciscain, appelé Mission de Notre-Dame-des-Neiges Sahy, située dans le Piémont du Nord Itapicuru dans la ville de Senhor do Bonfim, Bahia. Le champ d'étude qui ancre cette réflexion est l'histoire des femmes et porte sur les souvenirs des pratiques éducatives des femmes dans la famille, l'église et l'école. Dans ce texte, le clip est sur la datation et le mariage, nous essayons de comprendre comment c'est arrivé la cour, une communauté dans laquelle on avait coutume de tenir à l'écart des garçons et des filles. L'approche utilisée a été l'histoire orale, les sujets sont dix femmes âgées entre 15 et 100ans. Mots clés: mémoire, le rôle parental, la datation et le mariage.
1. Missão do Sahy: as mulheres e a Família
A maioria das famílias apresentadas nos relatos das dez mulheres remanescentes indígenas de Missão do Sahy, está ligada ao grupo das que se encontram na formação denominada antropologicamente de “nuclear” por serem, segundo os estudos dessa área, um grupo que consta do pai, da mãe e dos filhos, quer vivam juntos, quer não. É normalmente uma unidade básica da estrutura social, com que se constituem as duas relações primárias de parentesco: as de paternidade e as de irmandade.
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As famílias aqui tratadas têm procedência exógena, são originárias do casamento entre pessoas residentes no mesmo povoado, são uniões em sua maioria consentidas legalmente e por todos os parentes. Como dissemos acima, o conceito de família é algo que se modifica ao longo do tempo e de acordo com as modificações da estrutura social. O status de família, no Brasil, segundo Alves (2007), somente era conferido aos agrupamentos originados do Instituto do Matrimônio, segundo o Código Civil de 1916 — um atestado da aliança entre o poder estatal e a Igreja em defesa do patrimônio e da preservação de grupos. Para o autor, a felicidade das pessoas não era motivo de preocupação, pois era notório o desequilíbrio entre os casais, e o poder masculino tinha o respaldo da Lei:
[...] o Código era o espelho de uma sociedade ainda patriarcal e, por isso mesmo, machista, onde o marido tinha a incumbência de sustentar economicamente a família e à esposa só restava o dever da cuidar da casa e dos filhos, por óbvio que a legislação iria estampar a superioridade masculina. (ALVES, 2007, p. 3).
A citação de Aves(2007), é um pouco do que ainda acontece em algumas comunidades do interior do Nordeste, mesmo que estejamos vivendo no contexto atual um momento de divisão de responsabilidades no lar, com a mulher também contribuindo com o seu trabalho fora de casa, para o equilíbrio das contas e em alguns casos, até assumindo as finanças do casal; esse “espelho de uma sociedade patriarcal” ainda incomoda, devido a sua preservação que pode estar acobertada por uma falsa liberdade, em que o auto controle é uma prática que se apresenta nas entrelinhas das falas, na maneira de comportar-se, no vestir-se ou ainda de forma mais explicita, sob variadas formas de violência física.
Nos relatos das entrevistadas, as famílias de Missão do Sahy, apresentam traços de modernidade, por força de contratempos como a viuvez e os casamentos desfeitos; aparecem mulheres assumindo totalmente o comando da casa, e esse é um dos motivos pelos quais muitas famílias são adotadas pelas avós. Uma das entrevistadas, relata, que é originária de
[...] uma família de gente fraca, mas era humilde não é? Todo mundo unido a gente morava junto, meu pai morreu e minha mãe ficou na casa da minha avó, minha avó nunca botou ela pra fora porque ela trabalhava e não merecia botar ela pra fora porque ela era casada com meu pai, aí meu pai morreu e ela ficou viúva, nunca quis casar com outro, achou dois casamentos e não quis, e aí ficamos tudo junto: minha avó, minha mãe e tia (materna) Madalena, tia Lena (apelido) com dois filhos, depois um casou e ficou só o Antonio, que ainda hoje vive com ela e a minha [mãe] com nós duas eu e Petrina, [que] foi pra São Paulo.
Observa-se nesse depoimento que a autoridade da família recai sobre a avó pois, independentemente da condição financeira e do estado civil das filhas, ela as acolhe e aos seus filhos em sua casa — uma com dois filhos do sexo masculino, outra viúva, com duas filhas, dividindo equitativamente entre elas tanto as despesas quanto os parcos recursos financeiros resultantes do extrativismo do ouricuri e do trabalho na colheita de café.
Nas memórias das mulheres de Missão do Sahy é comum a presença dos ensinamentos da família especialmente da mãe a quem era delegado o zelo pelo corpo das filhas. Ao lembrarem das suas infâncias, a casa foi a primeira imagem que descreveram; a maioria narrou sobre o espaço social de sua casa, os acontecimentos e a convivência com seus familiares, enquanto que um por cento delas se reportaram a casa como espaço físico, um filete de lembrança que nos induz a ajuntar evidências e elaborar ainda que de forma tênue uma impressão sobre as condições sócio economias e culturais vividas por elas em seus grupos e na comunidade.
Para Halbwachs (2006),infancias unho so tem sentido para o grupo a que pertence os indivíduos, pois ele traz em si as lembranças de um evento vivido em comum, o que faz com que as lembranças do passado sejam reconstituidas. As lembranças reconstroem apenas o que é passado, logo, as entrevistadas trazem para o presente, as lembranças dos ensinamentos recebidos durante o período de sua infância, orientações que formaram a postura de muitas meninas da época, guiando as suas relações em seus grupos de amizades e brincadeiras, demonstradas claramente nos cuidados ao relacionar-se com o sexo masculino, para a maioria os pais não permitiam aproximação dos meninos, 40% das entrevistadas podiam brincar com irmãos e primos do sexo masculino e 1% podia brincar entre si sem restrições.
No livro Tristes Trópicos, Levi-Strauss (1996, p.272) descreve algumas cenas do cotidiano indigna Nambiquara, em que índios adolescentes brincam entre si sem nenhuma proibição, “[...] as mulheres jovens gostam da sociedade das crianças e dos adolescentes, com quem brincam e gracejam; e são as mulheres, dentro do grupo que cuidam dos bichos dessa forma humana característica de certos índios sul-americanos.” A única diferenciação encontra-se nas formas de trabalho, os meninos em idade mais madura são levados até as roças com os homens e as meninas seguem as mães nas coletas de alimentos e afazeres domésticos.
Seriam somente os índios do Brasil Central que agiam dessa maneira ou esta prática era comum a todas as outras regiões do Brasil? Se temos uma descendência indígena em Missão do Sahy, de onde se originou a proibição do relacionamento das meninas com os meninos, se estas restrições não eram propagadas entre as famílias de etnia indígena? Outra preocupação, se as proibições não fazem parte dos costumes de origem, por que as famílias do antigo aldeamento as adotaram?
È possível que esse tipo de proibição tenha tido a sua introdução no momento em que os religiosos no período da colonização interromperam alguns dos costumes vivenciados pelos indignas em suas tribos em seus grupos familiares através de castigos ou por assimilação. Frei Vicente Salvador (2009, p.62), escreve em seu livro História do Brazil (1500-1627) que aos filhos não obedeciam aos pais, que as mulheres mandavam nos maridos, além da dificuldade em averiguar qual das mulheres era a esposa do principal, visto que não existia contrato e ele podia tomar outras. Com a inserção do matrimonio, os nativos são levados a adotar as relações monogâmicas e legitimadas pelo sacramento do casamento.
Isso nos leva a crer que se o nativo convivia com várias mulheres e o elemento de distinção entre eles eram as formas de trabalho, o que era transmitidos pelos pais, então não havia proibições nos relacionamentos entre meninos e meninas e o que teria dado incio a este tipo de controle teriam sido as normas de civilidade e convivência instituídas pelos religiosos com o intuito de formar uma vida racional e civil. As proibições transmitidas pelos ensinamentos da Igreja, rompem com a idéia de um corpo assexuado, que convive com o outro sem que seja notadamente percebida a sua diferenciação social, o que vai colaborar para o surgimento da valoração do corpo feminino e de suas funções biológicas e sociais.
O namoro e o casamento: primeiro namorado, casei com esse viu?
Para as depoentes com idades entre 70 e 100 anos, classificadas nesse estudo como mulheres do primeiro grupo, o namoro era uma relação que acontecia por volta de doze a quatorze anos, era uma relação que começava através de olhares correspondidos, à distância, sem maiores aproximações de corpos, sendo por isso considerada por elas como um namoro “de respeito”, que se tornava uma relação consentida por todos, na ocasião em que o rapaz, acompanhado por algum membro mais velho da família, pedia a moça em casamento; a partir desse momento tornavam-se noivos e o rapaz podia então freqüentar a casa da moça. Em uma entrevista, a depoente comenta a reação de uma tia quando foi informada sobre o seu casamento: “[...] essa menina está muito nova [...] ela vai casar nova e pensa que casada pode namorar.” Diante dessa afirmação, a mãe respondeu: “Minha filha não é doida, ela tem juízo!” Em alguns relatos, encontramos algumas reações contrárias ao casamento de pessoas muito jovens, por acreditarem que um casal muito jovem não tinha condições nem amadurecimento necessários às responsabilidades advindas de um casamento.
Essas falas demonstram que, além de uma preocupação com a maturidade da mulher que iria assumir um compromisso de tamanha responsabilidade, havia o desejo de preservação da reputação das moças e da sua ascensão social, pois era necessário casar-se com alguém que, mesmo sendo de poucas posses, pudesse proporcionar um pouco de conforto para a família. Este pensamento, comum na camada popular rural, impulsionou a muitos casamentos de jovens adolescentes de até doze anos com homens mais idosos ou viúvos; várias famílias, sabedoras da existência de pretendentes com melhores posições socioeconômicas, desposavam as suas filhas, não se importando com a pouca idade delas; casavam-nas para satisfazer tanto ao patrimônio da família quanto às questões morais, ou seja, para livrá-las da possibilidade de envergonhar “o nome” de origem.
Dentre as entrevistadas, uma permanece solteira até hoje, com 82 anos. ela relata suas experiências com o trabalho, em sua casa, mas muito pouco se refere ao namoro e ao casamento. Mesmo assim, em uma das suas colocações diz que o namoro acontecia através de conversa “[...] que nem pegar na mão não pegava” e que ela nem se lembra mais se os namorados seguravam ou não as mãos. Ela encontra no destino as razões para o não-casamento e, por conta disso, permanece solteira até hoje, agradecendo a Deus por essa condição.
As mulheres do Sahy com idades entre cinqüenta e setenta anos, começaram a namorar entre 12 e 16 anos. Para uma delas, o namoro tinha o seu inicio entre os primos e às escondidas da família. Quando acontecia de serem flagrados, os pais tratavam de instruir a filha quanto aos perigos de uma aproximação com o namorado e convidava-os a namorar em casa, sentados à vista dos pais “[...] o pai de um lado e a mãe do outro, o rapaz e a moça ali, só segurando nas mãos.” É interessante notar que a maioria casou-se com o primeiro namorado. Numa comunidade onde as proibições eram muitas, as mães chegavam a bater nas filhas ao descobrir qualquer indício de namoro. Outra senhora conta que, aos doze anos, numa quinta-feira da Semana Santa, ela, juntamente com amigos, subiu ao Monte Thabor (costume religioso que acontece até hoje); ao retornar, foram até a casa de uma senhora que vendia bolo e refresco; a sua mãe ficou sabendo, através de uma vizinha, que ela estava com o namorado e algumas amigas, a mãe foi ao seu encontro e trouxe-a para casa pelas orelhas, uma ação que resultou em um pedido de noivado e, algum tempo depois, no matrimonio do casal. As mães pobres do povoado de Missão do Sahy, assimilando um ideal da classe burguesa (o fortalecimento da família através do cuidado com o espaço doméstico e o zelo pelos filhos, em especial a vigilância sobre as filhas), faziam desse princípio uma prática cotidiana, redobrando os cuidados com as meninas, prendendo-as ao trabalho doméstico, aconselhando-as sobre o que seria ou não prejudicial à moral de uma moça, num trabalho de conscientização eficiente, a ponto de as moças exercerem o autocontrole sobre si mesmas e sobre as amigas, o que certamente motivou a fala de uma das senhoras sobre o espanto do grupo ao ver uma amiga beijando o namorado: “[...] para um rapaz dar um beijo numa moça, era um sacrifício; e quando acontecia de uma do nosso grupo escapulir, nós ficava horrorizadas, tu viu fulana, eles tavam se beijando! (sic)."
Esse tipo de atitude corrobora o que escreve D’Incao (2007) sobre algumas formas de aproximação entre moças e rapazes da classe popular no século XIX: tomando como parâmetro algumas narrativas do livro de Manoel Antonio de Almeida, Memória de um Sargento de Milícia, a autora supõe que essa relação se dava de forma mais aberta e sem maiores proibições, pois, no livro algumas narrativas nesse sentido demonstravam que nas classes populares valiam o beliscão e pisadas no pé, mas agora entre os amantes, na ausência dos pais e como jogos da fase inicial de namoro.
Quanto às famílias da classe popular rural de Missão do Sahy, do mesmo modo que exerciam a vigilância sobre a castidade das moças também se preocuparam com a situação econômica do pretendente, pois a família já vivia as suas dificuldades financeiras e certamente não iria consentir num casamento que lhe trouxesse mais preocupações. Assim falam sobre o que pensavam os seus familiares: “Os pais só deixavam casar, depois que o rapaz fizesse a casa, nem que fosse um rancho de palha, mas tinha que ter um lugar... Eles falavam: não pode casar com essas pernas de calça que não têm aonde vocês enfiarem a cabeça.” O que as famílias das entrevistadas do segundo grupo do Sahy demonstram é que, herdando ou não alguns princípios criados pela burguesia, e já ressignificados, também tinham os seus próprios desdobramentos e mecanismos de controle sobre a formação de novos grupos familiares.
As mulheres que classificamos como terceiro grupo, com idades entre 15 e 30 anos, têm um grau de escolaridade maior, com mais acesso a outras formas de conhecimento e de trabalho; o povoado também sofreu muitas modificações, os mais velhos foram desaparecendo, outros elementos foram sendo incorporados à cultura local, ampliaram-se as relações com outras pessoas que passaram a residir ou trabalhar no povoado; com isso a visão de mundo foi se modificando e aquilo que ontem era considerado ofensivo é olhado hoje com mais naturalidade. O namoro para as mulheres dessa geração não mais é visto como algo essencial na vida delas; não é mais necessário cumprir aquele ritual da formação da dona de casa, elas têm outras metas de vida. Uma adolescente de 15 anos, tem o seu tempo dividido ente os estudos e a direção de uma pequena organização de jovens, sobrando muito pouco para outros tipos de atividades, entre elas o namoro. Perguntada sobre isso, ela relata:
Eu procuro não namorar muito, porque eu sou uma pessoa que tem muitas coisas a fazer... E principalmente a noite, eu não tenho tempo pra namorar, as vezes tem reunião na organização, eu tenho a maioria dos meus amigos... são amigos mesmo, e eu não quero atrapalhar a amizade pra namorar, porque fica um clima diferente [...].
As gerações anteriores tinham sobre si o controle dos pais, viam no namoro e no casamento um meio de melhoria de vida ou de libertar a sexualidade feminina, mesmo que para isso precisassem assumir responsabilidades em idade tenra e ter sobre si o controle do marido. Uma das entrevistadas mais velhas desse terceiro grupo ainda colocou o casamento como uma forma de liberdade, porém a criação dos filhos era bastante diferente da sua.
O que observamos é que os conceitos a respeito da geração de novos grupos e novas famílias mudaram; a movimentação das classes sociais, seus ideais e as formas de atuação mudaram; a própria família mudou, as mães de hoje não são mais aquelas que somente cuidavam de filhos, marido e administração doméstica; a mulher de hoje, depois de muitas conquistas e resistências, tem conseguido alcançar espaços nunca antes pensados; com isso, o namoro e o casamento foram perdendo um pouco a primazia na vida das mulheres e quando acontecem é de forma diferenciada; independentemente da motivação, obedecem a uma escolha determinada pelas pessoas que os propõem, não mais obedecendo aos interesses da família como acontecia no passado.
Em Missão do Sahy também se percebe isso, a exemplo da adolescente, que prioriza a sua formação profissional, faz opção pelos movimentos sociais, ocupando a direção da associação de jovens, além de ter muitos amigos. E a mais velha deste grupo, escolheu o casamento como forma de liberdade: “[...] eu casei...eu acho que era pra ter mais um pouco de liberdade...e de certa forma tive [...].” O cuidado com marido e filhos não fez com que ela se acomodasse, mas mudou a sua visão sobre o casamento: “[...] com o tempo, eu mudei o conceito que tinha de casamento... e já via de outra forma, mais de companheirismo... não só de liberdade [...]”; com isso, não abdicou de sua individualidade em prol da vida doméstica, mas modificou a dinâmica da sua casa para atender aos novos chamamentos da vida moderna, o que tem propiciado a ela novas experiências.
CONCLUSÃO: uma roda de conversa inconclusa
Sem dúvida, a mulher, por todo processo educativo recebido e pautado nas ideias religiosas tanto do catolicismo quanto do protestantismo, é ainda a memória viva da Igreja no seio das comunidades, uma prova da sua importância para a conservação dos preceitos de qualquer facção religiosa, assim como o mostra Almeida (2007, p.21):
Pela via educacional e religiosa, edificavam-se modos de vida,valores éticos e morais, hábitos e costumes. Nestes, a contribuição feminina era valorosa, pois as mulheres, de acordo com os princípios protestantes norte-americanos, seriam as mais indicadas para educar e instruir de acordo com os ditames da fé e da moral.
Nesse mister, que envolvia idéias igualitárias e não diferenciadas quanto ao sexo, eram as mulheres as educadoras da infância, as conhecedoras do método e as principais defensoras da co-educação. A exemplificação de acontecimentos ocorridos no período da colonização e a consideração de práticas comuns à Igreja em todos os tempos deixa à mostra a forma de contribuição dessa Instituição para o modelo feminino que ainda hoje sobrevive ao tempo e às aculturações decorrentes do processo civilizador. Os costumes religiosos ainda permanecem vivos nas práticas das pessoas de Missão do Sahy, mesmo que várias informações sejam intensificadas e transmitidas por outras instituições.
Ao observar as mulheres mais jovens, percebemos que elas têm recebido, além das influências das mães e resquícios das avós, os códigos do mundo moderno, que se infiltram através dos meios de comunicação (a televisão, o rádio, os jornais, as revistas, a telefonia digital, a internet) que interligam hoje Missão do Sahy ao que há de mais moderno. Vai sendo deixado para trás o tempo em que as cartas aos parentes eram escritas por terceiros e que demoravam uma semana ou mais para chegarem às mãos dos destinatários, e as noticias eram transmitidas de boca em boca nas rodas da quebra do ouricuri, nas idas e vindas entre as portas de casa ou na porta da igreja. É certo também que os relacionamentos sejam as amizades, o namoro ou o casamento se renovaram e assumiram outras formas de existir.
RFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Jane Soares de. Ler as Letras: porque educar meninas e mulheres? São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo: Campinas: Autores Associados, 2007.
D’INCAO, Maria Angela. Mulher e família burguesa, In: DEL PRIORE, Mary (Org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007.
HALBWACHS. Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro. 2006.
LEVI-STRAUSS, Claud, Tristes trópicos; tradução Rosa Freire d'Aguiar.- São Paulo: Companhia das Letras,1996.
VICENTE, do Salvador, Frei. História do Brasil, 1ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2009.
Artigo
ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O Reconhecimento Legal do Conceito Moderno de Família: O Art. 5º, II e Parágrafo Único, da Lei Nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Clubjus, Brasília-DF: 11nov. 2007. Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2008.
2.Royal Anthropological Institute of Great Britain and Irleand. Guia prático de antropologia: preparado por uma Comissão do Real Instituto de Antropologia da Grã-Bretanha e da Irlanda; tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo. Cultrix, 1973.
Trabalhos Acadêmicos
DA PAZ, Maria Gloria. História de mulheres: a educação de mulheres remanescentes indígenas de Missão do Sahy. Tese de doutorado apresentada a Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN. 2009.
Fontes Orais
BEZERRA, Gilsa de Souza. Entrevista concedida a Maria Glória da Paz em 09 jan. 2008.
COSTA, Isaura Nunes. Entrevista concedida a Maria Glória da Paz em 08 jan. 2008.
DOURADO, Maria das Neves de Aquino. Entrevista concedida a Maria Glória da Paz em 08 jan.
2008.
GAMA, Gisélia Rodrigues. Entrevista concedida a Maria Glória da Paz em 08 jan. 2008.
NASCIMENTO, Adalgisa Alves do. Entrevista concedida a Maria Glória da Paz em 08 jan. 2008.
SILVA, Maria José Anunciação. Entrevista concedida a Maria Glória da Paz em 08 jan. 2008.
SILVA, Saniuma Santana da. Entrevista concedida a Maria Glória da Paz em 28 jan. 2008.
SILVA, Terezinha Aquino da. Entrevista concedida a Maria Glória da Paz em 15 dez. 2007.
SOUZA, Antonieta de. Entrevista concedida a Maria Glória da Paz em 7 fev. 2008.
VALADÃO, Eulina Vieira Malta Eulina. Entrevista concedida a Maria Glória da Paz em 07 jan. 2008.
1Artigo apesentado Congresso internacional da AFIRSE – V Colóquio nacional. Out. 2009. publicado em CD - ISBN 9788577454372. *Doutora em Educação pela Universidade Federal do rio Grande do Norte-UFRN. Prof. Axiliar do Campus VII da UNEB e, Senhor do Bonfim, Bahia. **Doutora em Educação.Prof. Adjunto da Universdade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN.. Natal-RN.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Currículo, Narrativas e oralidade:A história de vida de D. Terezinha e as contribuições para o currículo da Escola Municipal Antonio Bastos de Miranda


RESUMO

Aluna: Maria das NevesA. Dourado
Orientadora: Prof. Claudia Maysa Lins

Currículo, Narrativas e oralidade:A história de vida de D. Terezinha e as contribuições para o currículo da Escola Municipal Antonio Bastos de Miranda – Missão do Sahy. Monografia de conclusão do curso de Pedagogia com habilitação em Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental, apresentada Á universidade do Estado da Bahia, campus VII, 2008. O contexto atual tem mostrado o quanto o Brasil é diversificado e rico em suas manifestações culturais, em função do regionalismo, havendo uma crescente valorização dos costumes locais em diálogo com diferentes culturas, levando a um intercâmbio multicultural. Essa troca tem a oralidade como um dos seus principais instrumentos. A transmissão de saberes dentro de uma comunidade especifica também dá-se por meio da oralidade. Assim sendo a presente pesquisa objetivou analisar as contribuições das narrativas de D. Terezinha para a dinamização e contextualização do currículo da Escola Municipal Antonio Bastos de Miranda – Missão do Sahy. A metodologia fenomenológica foi priorizada, utilizando-se como instrumento a entrevista semi-estruturada ao sujeito da investigação. Procedeu-se as análises dos dados coletados por meio da metodologia numa perspectiva epistemológica fundada na fenomenologia Macedo (2004), em diálogo com outros autores que compuseram o quadro teórico, a saber: Alberti (1989); Brandão (1989); Gonçalves (1997); Machado (2007); Nicolau (2003); Koch (1992); Silva (1971); Silva (2001) entre outros. Por fim apresentam-se as considerações finais ressaltando os resultados do estudo, onde se constatou que na análise dos dados constam elementos extremamente ricos, que servirão como caminhos possíveis para recuperar as condições de vida da comunidade; as formas de dar visibilidade ao cotidiano de populações silenciadas pela história.
Palavras-chave: Oralidade; Educação; História de vida e Cultura.
A MONOGRAFIA ESTÁ DISPONIBILIZADA NA BIBLIOTECA DO CAMPUS VII DA UNEB

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O ÍNDIO NO IMAGINÁRIO DE CRIANÇAS DE UM POVOADO REMANESCENTE DE ANTIGA MISSÃO FRANCISCANA



*ALUNA; Celmar Osório S dos Santos
**ORIENTADORA: Profª. Maria Gloria da Paz

O Resumo aqui apresentado é referente a um estudo monográfico teve como objetivo identificar o que as crianças da Escola Municipal Antônio Bastos de Miranda, no Distrito de Missão do Sahy, Município de Senhor do Bonfim na Bahia; pensam sobre si mesmas e qual a visão que elas desenvolveram sobre os índios, como também conhecer, através das falas dessas crianças, o trabalho que a referida escola desenvolve sobre os índios e a sua relação com o imaginário das crianças de Missão do Sahy. A Metodologia utilizada foi a entrevista oral, com a técnica dos grupos focais para a coleta de dados, cuja análise foi baseada na categorização das falas das crianças. As categorias foram definidas de acordo com os objetivos. Os resultados permitiram perceber que as crianças expressam variados conhecimentos sobre os índios, um misto de admiração, por sua estreita relação com a natureza, e de estranheza por suas peculiaridades culturais. Além disso, as crianças expressam sintonia com suas vivências no Povoado, ao mesmo tempo em que apontam a escassez de atividades escolares focalizando os índios.
MONOGRAFIA DISPONIBILIZADA NA BIBIOTECA DO CAMPUS VII
* Aluna do Curso de Pedagogia: Habilitação nas Séries Iniciais e Educação Infantil, Departamento de Educação Campus VII, da UNEB, Senhor do Bonfim-Bahia.
** Professora Auxiliar da UNEB – Campus VII (Senhor do Bonfim). Pesquisador do Grupo de Pesquisa MEMÓRIA DA EDUCAÇÃO NA BAHIA da UNEB. Mestre em Educação em Pesquisa pela Unversité du Quebéc au Chicoutimi – Canadá. P.Q.I. UNEB/UFRN. E-mail: gogodapaz@yahoo.com.br

terça-feira, 18 de agosto de 2009

GILSA BEZERRA: QUASE VEREADORA, POIS EM SEU CAMINHO TINHA UM HOMÔNIMO

Maria Gloria da Paz*- URFN
Professora Auxiliar da UNEB – Campus VII (Senhor do Bonfim/Bahia). Doutoranda; P.Q.I. UNEB/UFRN
Marlúcia Menezes de Paiva** - UFRN
Professor Adjunto da UFRN

O objetivo desse trabalho é pensar sobre os lugares sociais ocupados pelas mulheres do povoado de Missão do Sahy, Município de Senhor do Bonfim, Bahia a partir dos relatos da história política de Gilsa Bezerra, suplente em 1996, para a Câmara de Vereadores municipal. O tema desse estudo é parte de um campo maior de uma pesquisa em andamento que trata da História de Mulheres Remanescentes Indígenas que habitam uma extinta missão franciscana no interior da Bahia, e da qual Gilsa Bezerra faz parte.
Tomamos como fonte de estudo os relatos de Gilsa Bezerra, sobre a sua história política; e tentamos compreendê-los á luz das reflexões de Michelle Perrot (1998), sobre os lugares sociais ocupados pelas mulheres; suas frentes de lutas e resistências, além dos estudos de Rachel Soieth, que tratam sobre a maneira como as mulheres brasileiras e em especial Bertha Lutz, conquistam os seus espaços publicos. A proposta metodológica utilizada para o registro e compreensão dessas histórias, nessa pesquisa, é a história oral. O texto que se segue está dividido em três partes: a presença feminina no aldeamento, a biografia da personagem e suas narrativas e as considerações finais.
PALAVRAS - CHAVE: Missão do Sahy – lugares públicos – Gilsa Bezerra
Missão do Sahy é um Povoado que fica situado no piemonte norte da bacia do Itapicuru, a 8 km da sede do Município de Senhor do Bonfim, no estado da Bahia, Brasil. É um antigo aldeamento instalado, por volta de 1697, no território das Jacobinas
1, pelos padres franciscanos da Ordem Menor, tendo sido elevada a categoria de Vila, em 1720, e perdido o título dois anos depois para a Jacobina Nova, se localizava uma mineração de ouro.
A população do povoado, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do Censo de 2000, é de 1.574 habitantes, sendo 684 do sexo masculino e 890 do sexo feminino, portanto um universo significativo de mulheres, num espaço entremeado por histórias de vida, de sonhos, de trabalhos e de conquistas, assim como, em vários momentos, de tristezas e frustrações.
A história das mulheres do povoado não difere de outras histórias de mulheres que ainda lutam pela conquista de espaços — seja em Missão do Sahy, nas grandes cidades ou na França —, e mesmo vivendo o que para muitos é a pós-modernidade, para essas mulheres os desafios a serem enfrentados permanecem tanto maiores quanto os desafios do passado e até os silêncios que envolvem as suas próprias histórias.
A comunidade de Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy, que é também formada por mulheres, jovens e crianças, traz em si marcas da atuação feminina nas atividades religiosas, na política e na direção de associações, embora saibamos que todas elas foram criadas para administrar o espaço reduzido de seus lares; esse comportamento vem modificado uma história que, no passado, somente colocava em destaque os personagens masculinos — na figura dos padres, dos índios, dos colonos, dos mineradores e dos vaqueiros —, lugares bem delimitados pelas atividades realizadas por eles e onde naturalmente se pensava que não caberia a figura feminina da época.
Por volta do século XIX, na Europa, as mulheres já começavam a participar ativamente da vida social e dos movimentos em busca do seu reconhecimento enquanto ser produtivo, pensante e capaz, de conquistas no campo do trabalho assalariado, na política, na arte e na literatura, dentre outros; em Missão do Sahy, no Brasil, o espaço do trabalho já era dividido entre homens e mulheres, não como status de direitos e igualdade delas, mas como extensão dos lares; mesmo porque, a cultura imperativa era a de que a mulher deveria viver subjugada ao poder aquisitivo e valorativo dos maridos, alem do domínio da memória de um tempo passado, que lhes foi transmitida nos ensinamentos práticos das mães e das avós: as prendas domésticas, o cuidado com os filhos e maridos, a administração do lar, além do trabalho nas roças: a quebra do ouricuri
2, a secagem de fumo, a secagem e moagem do café e do arroz ou a raspagem da mandioca, restando-lhe apenas como lugar público a igreja e os seus rituais (a festa de Nossa Senhora das Neves, as novenas em comemoração a outros santos, o Natal, o São João, a Semana Santa e os enterros).
As mulheres, em especial as mais velhas, exibem as mãos calejadas e marcadas pelo envelhecimento biológico e pelo duro cabo da enxada ou das facas de descascar mandioca, e ainda conservam na memória e transmitem para as mais jovens algumas práticas do passado, tais como sair à tarde ou pela manhã bem cedo com um xale ou chapéu na cabeça nas proximidades do povoado em pequenas chácaras e sítios vizinhos, para coletar alimentos, lavar roupa na beira do riacho, quebrar ouricuri, trazendo para a prática hábitos aprendidos quando criança e que ainda estão presentes na lembrança sobre o trabalho dos roçados a que foram submetidas desde tenra idade: “tinha mãe que a filha com cinco anos já estava sentadinha no chão tirando licuri, conheci muitos, os nossos não, mais outros eu conheci muita gente, botava ali de castigo pra quebrar licuri que era pra no dia de sábado comprar as coisas.” (Entrevista concedida à autora em 09/01/2008).
A sombra do poder aquisitivo dos maridos não transformou essa mulher numa alegoria, como acontecia com as mulheres casadas no século XIX na França, em que a sua imagem refletia o poder econômico do marido, como fala Perrot (1998): “... sua elegância, seu luxo e mesmo sua beleza exprimem a riqueza ou o prestígio de seus maridos ou de seus companheiros (p.15). As mulheres mais velhas de Missão não fizeram e nem fazem parte desse cenário, elas são empobrecidas, são mulheres que sofreram muito para criar os filhos, pela vida que levavam tanto no trabalho no interior de suas casas, no roçado, ao lado ou na ausência dos maridos (viuvez), o que não as isentou de passarem pelos mesmos problemas que as mulheres da cidade, em virtude de não terem acesso à palavra, e somente tendo notada a sua presença quando à frente de acontecimentos religiosos no interior da comunidade; nesse caso, a publicidade dos seus corpos não se fez através de cartazes publicitários nem de esculturas; pelo contrário, elas ainda continuam preservadas em seus espaços privados representados pela casa e pelo pequeno espaço do núcleo do povoado, já que as roças praticamente deixaram de existir.
Distante da ociosidade e do glamour da moda, a mulher de Missão do Sahy do inicio do século XX confeccionava as suas vestes à mão, longe dos espaços da moda, das costureiras e dos seus equipamentos modernos (as maquinas de costura, os esquadros, as réguas e os moldes das revistas), mesmo assim não se sentiam menos vaidosas que as burguesas retratadas pelo art nouveau do século XVIII.
(...) umas dizia assim; vamos fazer os vestidos assim, tu faz o teu desse jeito e o meu desse, a gente mesmo costurava na mão, era na mão que a gente costurava e fazia os vestidos da gente; quebrava licuri e vendia no Bonfim, aí só tinha a loja do Paulo Matos, em Bonfim, no Campo do Gado e a gente chegava lá e comprava a chitinha
3 e fazia os vestido. (Entrevista a autora em 08/01/2008))4
A trajetória das mulheres dessa comunidade, desde o período em que o território dos Sertões foi sendo povoado, vem passando por processos formativos de geração em geração, sofrendo uma evolução permanente: desconstruindo valores arcaicos, absorvendo mitos contemporâneos gerados e geridos por um novo contexto socioeconômico e cultural, vivenciado por todo o mundo na atualidade. Esses processos formativos tiveram o seu inicio no período da colonização, com a instalação das missões religiosas franciscanas, por volta de 1697, em que os padres, utilizando-se do instrumental da arte e do medo, impuseram os seus princípios religiosos e a sua cultura, levando principalmente às mulheres a crença em novos mitos gerados pela tradição cristã; a educação transmitida pela Igreja suprimiu várias manifestações culturais dos habitantes locais sob a acusação de estarem praticando paganismo.
Na visão de Paul Veyne (1984), o mito é o conhecimento que, transmitido através da informação, é aplicado ao domínio do saber — o que para nós depende da discussão ou da experimentação, mas que, para outros, depende apenas de um bom contador de histórias; e nisso a Igreja, através dos padres, tem a sua eficiência reconhecida, pois, utilizando-se da catequese, da oratória, da arte do teatro e da música, conseguiram penetrar profundamente nas raízes culturais dessa comunidade, tendo ainda hoje por testemunho a obediência e o respeito para com as coisas ditas sagradas.
Pelo rigor religioso que as mulheres dessa localidade deixam transparecer, percebe-se em seus relatos que foram impulsionadas culturalmente pelos ensinamentos transmitidos pelas mães que, por sua vez, se utilizaram dos resquícios da cultura das antepassadas que viveram durante o período histórico das catequeses, perpetuando o que em épocas anteriores era ensinado mediante a obediência às normas rígidas, recheadas por proibições e contrições, tudo perfeitamente controlado através de táticas e estratégias para a construção do bom cristão, temente a Deus e aos preceitos do cristianismo.
A desenvoltura para com os rituais da religião encontra sua gênese na fertilidade do campo religioso, com seus ritos, cânticos, crenças e devoções e o alto grau de obediência ainda hoje devotado às normas estabelecidas pela Diocese, o que, para elas, é de fundamental importância; ensinar aos mais jovens as práticas e os costumes adquiridos através das instituições e de pessoas, é, para elas, disseminar o que aprenderam com seus pais, além dos ritos religiosos, os valores, os mitos e também as práticas ligadas ao cotidiano, como a culinária, os remédios caseiros, cânticos de plantio e de colheita, rituais fúnebres, festas religiosas e os folguedos.
A inserção das mulheres de Missão do Sahy no mundo letrado não era algo tão valorizado como no contexto atual; nascidas em famílias mais voltadas para o sustento, elas eram mais estimuladas a se prepararem para o casamento e para o trabalho doméstico além dos afazeres mais voltados ao trabalho da roça; o que nem de longe se assemelhava ao perfil das mulheres francesas dos estudos de Perrot que, no recôndito dos lares, se refugiavam na literatura, saindo daí para criarem os salões de leitura e reuniões, abrigando depois os saraus de escritores, os filósofos e os artistas para a prática da conversação — inicialmente voltados para as artes, depois tomando um cunho político e ecumênico.
O século das luzes não trouxe para a mulher francesa a função de escritora nem de filósofa, mas deu-lhe a liberdade de estar informada, com capacidade para discutir qualquer assunto; deu-lhes a liberdade para criar os salões, estes espaços em potencial para os desvelamentos, além de servir como refúgios para as exiladas. Não raro estrangeiras essas mulheres tinham mais liberdade do que as outras. Exiladas, às vezes, elas se interessavam pela coisa pública (...) (Perrot, 1998. p.62)
A palavra lida e escrita, praticada solitariamente no quarto ou recantos da sala, das residências, é a arma que abre espaço para que essa nova mulher mostre-se ao mundo; pois, ao extrair-se do interior das casas, do cuidar da família, do lugar anteriormente destinado a ela por ser considerada não como cidadã, mas como pessoa dependente da ação masculina, ela encontrou na palavra o caminho lhe assegurou conquistas, sobretudo o direito ao voto e a elegibilidade.
A palavra escrita — que, para algumas mulheres, se transformou em símbolo de liberdade — para as mulheres de Missão do Sahy, teve a função de domesticação, de aprisionamento aos preceitos religiosos, o que, consequentemente, reforçou a ação masculina. A utilização da palavra escrita, que inicialmente teve a sua transmissão feita apenas pela voz da Igreja através dos textos dos breviários, trazidos e lidos nos sermões dos padres franciscanos no tempo da missão religiosa, ainda hoje faz parte dos valores culturais das mulheres dessa comunidade, seja na vivência em família, nos rituais religiosos ali realizados e até nos escritos de cântico e orações nos cadernos de benditos
5, (...) eu tenho até os livros aí guardados, eu tenho o livro que a gente reza na semana santa na igreja, eu levo o catecismo (...) (Entrevista concedida à autora em 12 /12/2007)6.
A mulher de Missão do Sahy, que refletia a imagem da mulher da zona rural (que, mesmo tendo acesso à escolarização, apenas em número reduzido conquistou um espaço de trabalho que lhe assegurasse pelo menos um salário mínimo), hoje está se modificando; já se percebe na atualidade que as mulheres estão buscando alternativas, alcançando outras funções diferentes daquelas ligadas ao trabalho doméstico e ao cultivo de subsistência, como no tempo das suas mães e avós — que receberam, enquanto filhas mais velhas, a obrigação de criar os filhos-irmãos menores; As irmãs mais velhas tinham essa tarefa, assim, de tomar conta [dos irmãos mais novos] e de passar [os ensinamentos] que a mãe passou pra elas, e aí passar pra gente não é? Elas tinham assim essa obrigação. (Entrevista à autora em 08/01/2008).
. A atuação da mulher no povoado de Missão do Sahy não esteve eminentemente ligada ao trato com as letras, e são poucas as mulheres que chegaram a obter uma formação em nível médio, feito realizado apenas pelas mais novas. Mesmo assim, elas transitam satisfatoriamente entre o gerenciamento da rudimentar economia doméstica, o trabalho na roça, até chegarem a um bom desempenho em campos tradicionalmente atribuídos à ação masculina, como o associativismo, o comércio e também a ação política no município.
Dona Gilsa: quase vereadora, não fosse um adversário plantado em seu caminho
Dona Gilsa, como é conhecida, nasceu em 22 de agosto de 1942, no povoado de Missão do Sahy, município de Senhor do Bonfim, Bahia; é a sexta filha do casal José Felipe de Souza Filho e Isaurina Xavier de Souza, casou-se aos dezesseis anos, teve dez filhos, sete do sexo feminino e três do masculino, (...) já tem 47 anos que eu sou casada, graças a Deus, depois desse tempo que eu casei com ele [olha para o esposo] as minhas coleguinhas, quase tudo se largaram dos maridos, mais eu não, to até hoje e vou até o fim, com fé em Jesus. (Entrevista concedida em 09/01/2008).
Gilsa Bezerra, é uma professora leiga
7, hoje aposentada, com uma atuação bastante significativa na comunidade; trabalhou durante muito tempo como professora alfabetizadora, contratada pela Secretaria Municipal de Educação, e, quando aconteciam situações de extrema necessidade, também agia como parteira e enfermeira. Dessa proximidade com as famílias e com os problemas do povoado e seus arredores, nasceu a sua incursão pelo mundo da política, embora não tivesse aptidão para desempenhar esse tipo de papel, como ela nos relata; (...) é a atuação política foi por vontade do povo né, e eu sempre tive vontade de ajudar, ajudei bastante,[pra política] eu não tinha muita vocação nã (...).
Filiou-se ao antigo PPB
8, ação que a transformou num elo político entre a comunidade de Missão do Sahy e o poder político do município, candidatando-se por mais de uma vez ao cargo de Vereadora — fato que, embora não tenha logrando êxito no pleito, constituiu-se num grande feito em meio ao conservadorismo da política local contra uma candidatura feminina.
O inicio do século XX no Brasil foi um momento de eclosão de lutas e movimentos pelos direitos feministas, dentre eles o direito à elegibilidade e ao voto, o que conduziu as mulheres à criação de estratégias com o intuito de reverter a legislação referente à participação feminina no espaço político brasileiro. A chegada de Bertha Lutz, ao Brasil, por volta de 1918, é mais um estímulo para as lutas pela concretização da presença feminina no cenário político brasileiro, o que já havia tomado corpo com os protestos de Nízia Floresta em 1830, a entrada de Myrthes de Campos na OAB, e os movimentos decorrentes da negação do alistamento eleitoral da professora Leolinda Daltro, que a partir desse episodio organizou várias frentes de lutas pelo direito ao voto,
(...) fundando em 1910 O Partido republicano feminino, a fim de fazer ressurgir no Congresso o debate sobre o voto feminino. Em novembro de 1917 organizou uma passeata com 84 mulheres, surpreendendo a população do Rio, o que pode ter contribuído para que no mesmo ano o Deputado Maurício de Lacerda apresentasse a Câmara um projeto de lei estabelecendo o sufrágio feminino, [mas] que nem chegou a ser discutido. (SOIHET, 2000.p.99)
Certamente, várias mudanças ocorreram até as décadas de 50 a 90 desse século e contribuíram para uma reformulação do discurso que consolidava o lar como o único lugar de atuação da mulher; e na busca por espaços e pelo fortalecimento das conquistas, as mulheres têm criado táticas, às vezes sutis, que lhes permitem avançar em busca de direitos que vão desde assumir cargos assalariados até o exercício de cargos eletivos. A mulher no Brasil, assim como a européia e outras, desvencilharam-se da idéia do existir somente para o cuidado com a família e se colocaram à disposição para atuar em outros campos, como a política, a enfermagem, a assistência social, o comercio, dentre outras atividades.
Para Gilsa Bezerra, esse também foi o momento de compartilhar, ocupando um espaço público feminino ocioso, com sua participação política na comunidade onde reside. Em depoimento, ela imputa a sua candidatura à vontade popular e à sua atuação comunitária
(...) a atuação política foi por vontade do povo não é, e eu sempre tive vontade de ajudar, ajudei bastante, eu não tinha muita vocação não, mais depois fui criando, tomando gosto e todo mundo no Bonfim me conhece, é por Salvador, é tudo me conhece, graças a Deus. (Entrevista concedida em 09/01/2008)
Em Missão do Sahy, nos meados do século XX, Dona Gilsa de Souza Bezerra, usufruindo de um direito conquistado, concorreu pela primeira vez, em 1996, ao cargo eletivo para a Câmara de Vereadores Municipal, conseguindo 380 votos, ficando como suplente de Vereador. Ao se referir a esse episódio, sua voz traduz um pouco de tristeza, apontando que a causa para sua derrota política deveu-se a uma estratégia muito utilizada pelos políticos na região, a qual consiste em impor um candidato adversário no suposto domínio político do candidato “natural” daquela localidade, com a finalidade de desviar para si determinada quantidade de votos, inviabilizando assim a eleição do outro.
(...) consegui 380, [naquela época eram quantos?] era 400, eu ainda ganhei 380 mais foi roubo, porque tinha um rapaz chamado Gilso, ele não era bem conhecido e nem nada, entrou na política naqueles dias e teve muito voto, todo mundo diz que ali foi os votos que eles pegaram: Gilsa e Gilso... [faz uma pausa] era pra eu ter ganho de passar, mais é assim mesmo, aí eu fiquei desgostosa e não fui mais nunca pro lado de lá (...). (Entrevista concedida em 09/01/2008)
Verossímil ou não, esse relato nos dá a medida do que se apresenta como resistência ao acesso das mulheres no espaço de poder político do Brasil, aqui refletida nessa tática grotesca, num pequeno povoado ainda sem o domínio completo do letramento e, portanto, suscetível de ardilosas ações da velha política coronelista, desenvolvida pelas oligarquias no interior do Nordeste brasileiro.
O poder é um dos espaços que mais resistência oferece e tem oferecido à mudança e a inclusão de mulheres, sendo o mundo da tomada de decisões e do poder político um âmbito de acesso particularmente difícil para que as mulheres nele possam participar.
Devido às frentes de lutas e à insistente marcha que as mulheres vêm ao logo do tempo imprimindo em favor da conquista de direitos, muito já se tem conseguido avançar nesse espaço; e
Desde que as mulheres obtiveram o direito ao voto que se mantém aceso o debate sobre a função da mulher na política. Em comparação com o que sucedia 100 anos atrás, a mentalidade geral relativamente á integração da mulher nessa atividade revela-se bastante mais positiva e, actualmente, poucas pessoas continuam a pensar que as mulheres não têm nada que fazer nessa área
9 (p.19).
Felizmente, alguma coisa começa a mudar; é certo que é uma evolução ainda muito lenta, principalmente para a maioria das cidades do interior da Bahia, onde o pensamento machista domina tanto o espaço político quanto a maioria dos partidos, onde consta a participação das mulheres apenas como estatística e enquanto filiação e, nesse contexto, muito poucas como candidatas em potencial aos cargos eletivos. Nessas cidades, quando as mulheres se colocam como pretendentes aos cargos eletivos, ainda sofrem preconceitos e quando raramente são eleitas, tem como sustentação o poder financeiro e político masculino, razão pela qual permanecem atreladas e sem muito poder de decisão.
Em que pese à decisão de Dona Gilsa em abandonar o meio político, no relato em que narra o encontro com o juiz da Vara Eleitoral, no momento da sua convocação para receber o diploma a que fazia jus como suplente de vereadora, deixa transparecer uma pequena luz de esperança,
(...) apois, recebi uma intimação do juiz, que eu devia me comparecer, que queria conversar comigo, aí eu fui, chegou lá ele disse: que eu era uma heroína, que eu não desistisse, que um daí eu ia, que ele mesmo tava sabendo que aquilo ali, não tava certo, ele disse a mim, e sua diploma ta aí, a sua diploma de suplente. (Entrevista concedida em 09/01/2008)
A esperança, simbolizada pela palavra heroína, certamente é a força que manteve aceso o desejo impulsionador das lutas de Nízia Floresta, Leolinda Daltro, Myrthes de Campos, Bertha Lutz e Gilsa Bezerra – esta, candidata por mais duas eleições — que, em virtude de acreditarem nessa possibilidade, investiram no sonho de poder participar da construção do mundo em pé de igualdade de direitos com os homens, seus parceiros de humanidade.
Com a história oral, uma pausa nas reflexões
Ao tentar compreender a construção de um fragmento de cidadania da mulher através dos relatos de Gilsa Bezerra, fizemos da história oral o veículo que nos conduziu a uma aproximação maior com a sua história, o que nos permitiu uma participação mais intensa na externalização de sentimentos, que permaneceram guardados até o momento em que se tornou possível ouvi-los, e transformá-los em documento escrito.
Essas informações orais, embora pouco valorizadas, nos permitiram adentrar em estreitos lugares e deles extrair determinadas situações na vida de pessoas desconhecidas do publico e que trazem, a depender das informações encontradas, significativas contribuições para o conhecimento de costumes de indivíduos e dos espaços por eles habitados.
Não poderíamos deixar também de trazer, para esse texto, algumas considerações sobre a importância da realização desse tipo de estudo, pois a produção de conhecimento nessa área é mais uma singela contribuição para os estudos referentes à mulher e à sua atuação nos lugares sociais, especialmente aqueles cujo acesso anteriormente lhes foi negado; e tomar a história oral como aporte é uma tarefa significativa, pois, pela condição social dessas mulheres moradoras de pequenos vilarejos em sua maioria pobre e de hábitos de vida simples, de certa maneira é tornar claro que elementos culturais — como algumas lutas e práticas sociais por direitos universais, muito próximas das vivências de mulheres que habitam o país em grandes centros urbanos — também estão disseminadas em pequenas localidades e entre mulheres de hábitos e vida simples. Nesse sentido, a luz trazida pelos estudos de Shoiet (2000) sobre a pedagogia da conquista dos espaços públicos pelas mulheres, enfocando a trajetória de Bertha Lutz, foi também para nós um elemento encorajador que nos incentivou a contarmos um pouco da história de Gilsa Bezerra, suplente de Vereadora em Missão do Sahy, no Município de Senhor do Bonfim, Bahia.
BIBLIOGRAFIA
PAZ; Maria Gloria da. Missão do Sahy: educação e cultura, In: Educação na Bahia Coletânea de textos. Salvador: Ed. UNEB, 2001.
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São paulo: Editora UNESP, 1988,
SOIHET, Raquel. A pedagogia da conquista do espaço público pelas mulheres e a militancia feminista de Bertha lutz. 2000.
VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos. São Paulo. Editora Brasiliense(1984)
A Mulher na Política Local. Rumo à plena cidadania da mulher: documento etapa 2004, Barcelona. 2004
FONTES ELETRONICAS
http://www.suapesquisa.com/partidos/ (acessado em 25 de abril de 2008)
http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/dicionario.asp?id=92 (Acessado em 29/04/2008)
http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/benditos.htm (Acessado em 01/05/2008)
FONTES ORAIS
ADALGISA ALVES DO NASCIMENTO: moradora deo povoado de Missão do Sahy, Municipio de Senhor do Bonfim, Bahia. Entrevista concedida em 2008
GILSA de SOUZA BEZERRA: moradora do Povoado de Missão do Sahy, Municipio de Senhor do Bonfim, Bahia. Entrevista concedida em 2008
TEREZINHA AQUINO da SILVA: moradora do Povoado de Missão do Sahy, Município de Senhor do Bonfim, Bahia. Entrevista concedida em 2008
* Professora Auxiliar da UNEB – Campus VII (Senhor do Bonfim). Pesquisador do Grupo de Pesquisa MEMÓRIA DA EDUCAÇÃO NA BAHIA da UNEB. Mestre em Educação em Pesquisa pela Unversité du Quebéc au Chicoutimi – Canadá. P.Q.I. UNEB/UFRN. E-mail: gogodapaz@yahoo.com.br
** Professor Adjunto da UFRN– Pós-Doutorado. Universidade. Federal do Rio de Janeiro/ Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, UFRJ/EHESS, França.. Endereço eletrônico marlup@ufrnet.br
1 As Jacobinas eram um território situado entre Montes Altos e a Cachoeira de Paulo Afonso e entre os rios São Francisco e das Contas. Dividido por duas grandes regiões com os nomes de Jacobina Nova e Jacobina Velha (Freitas, 2001:84).
2 RAMALHO, Cícera Izabel. LICURI (Syagrus coronata), O licuri (Syagrus coronata) (Martius) Beccari, pertence à família Arecaceae, subfamília Arecoideae, tribo Cocoeae, subtribo Butineae (Noblick, 1991) (...)é uma planta reconhecida na composição da caatinga. Mede de 8 m a 11 m, tendo folhas com mais ou menos 3 m de comprimento, pinadas de pecíolo longo com bainha invaginante, e seus folíolos, de coloração verde-escura, estão arranjados em vários planos (LORENZI, 1992) (Figura 2A). Seu estipe é recoberto pela base das bainhas das folhas mais velhas, arranjadas numa seqüência de espiral, que caem após certo período de tempo, deixando cicatrizes que formam um desenho muito atrativo (Figura 2B). A palmeira é monóica, apresentando inflorescência interfoliar, muito ramificada, protegida por uma bráctea.
3 CHITA: Um tipo e tecido de pouco valor, bastante colorido e com estampas floridas.
4 Entrevista concedida por Adalgisa Alves do Nescimento , em sua residência no Povoado de Missão do Sahy, Bahia, no dia em 08/01/2008.

5 No seu “Dicionário Musical” frei Pedro Sinzig OFM define os benditos simplesmente como cantos sacros populares. O saudoso professor Luís da Câmara Cascudo, no Dicionário do Folclore Brasileiro, elabora um pouco mais esta definição: "Os benditos são cantos religiosos com que são acompanhadas as procissões e, outrora as visitas do Santíssimo. Denomina o gênero o uso da palavra "bendito", iniciando o canto uníssono." O folclorista Rossini Tavares de Lima no seu ABECÊ DO FOLCLORE, explica ainda que o bendito é uma oração cantada cujos versos fazem menção à expressão "Bendito louvado seja" ou apenas à palavra "Bendito"(...)

http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/benditos.htm (Acessado em 01/05/2008)
6 Entrevista concedia por Terezinha Aquino da Silva a autora em 08/01/2008, em sua residencia no povoado de Missão do Sahy.
7 Professores Leigos: Termo que se refere aos professores sem qualificação pedagógica. A existência de professores leigos é comum em países do terceiro mundo, nas áreas mais pobres e, principalmente, na zona rural. No Brasil, a existência de professores leigos é mais comum nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde muitos deles estudaram apenas até a 4ª série e a maior parte não terminou o ensino fundamental (antigo 1º grau). Em 1999, cerca de 30%, dos 456 mil professores de ensino fundamental no Norte, Nordeste e Centro-Oeste não tinham habilitação para lecionar. Ainda, de acordo com dados do MEC, do universo de professores leigos existentes no País, na mesma época, cerca de 110 mil não haviam concluído sequer o ensino fundamental.

http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/dicionario.asp?id=92 (Acessado em 29/04/2008)
8.PP- Partido Progressista (ex-PPB) Criado em 1995 da fusão do PPR (Partido Progressista Reformador) com o PP e PRP. Tem como base políticos do antigo PDS, que surgiu a partir da antiga ARENA. O PPB defende idéias amplamente baseadas no capitalismo e na economia de mercado. Seus principais representantes são o ex-governador e ex-prefeito Paulo Maluf de São Paulo e o senador Esperidião Amin de Santa Catarina.
http://www.suapesquisa.com/partidos/ (acessado em 25 de abril de 2008)
9 A Mulher na Política Local. Rumo à plena cidadania da mulher: documento etapa 2004, Barcelona. 2004